SANGUE, SUOR E LÁGRIMAS NO, IMPESTADO DE VILÕES, OCEANO DAS VIAS SINGRADAS PELOS “NAVIOS NEGREIROS” HODIERNOS
As vias (ruas, avenidas, etc.), isto é, a superfície, o solo por onde transitam veículos, pessoas e animais, compreendendo as pistas, as calçadas, os acostamentos, as ilhas e canteiros centrais, são, nos termos do art. 99, I, do Código Civil Brasileiro (CCB), bens públicos de uso comum do povo.
Significa isso verdadeiramente que pertencem ao povo brasileiro e que a esse devem servir. Os representantes políticos eleitos, nesse diapasão, são os responsáveis apenas por cuidar do bom uso das vias, para tanto podendo inclusive regulamentar sua utilização de modo a garantir o melhor possível não apenas para certa casta da sociedade, mas para o máximo de pessoas.
Em Fortaleza, a exemplo do que sucede em outras grandes cidades brasileiras, as vias não têm sido usadas de modo racional, equânime e muito menos garantidor de bem-estar para a maior quantidade possível de usuários.
Com uma frota cada vez mais próxima do marco de UM MILHÃO de veículos particulares, é demais comum a cidade amiúde parar ou fluir ao ritmo de quelônios grávidos. E, quando isso ocorre – o que, nos últimos tempos, pode-se dar a qualquer momento – sofrem todos, uns mais, outros menos, contudo.
Para quem está sentado, geralmente no ar-condicionado, ouvindo, se quiser, uma música de seu gosto, há transtorno, sem dúvidas; mas para os que estão, nos transportes públicos ordinários (ônibus e vans), sem ar-condicionado, com calor, ouvindo toda sorte de ruídos, no meio de uma superlotação, frequentemente em pé, os dissabores são multiplicados.
Um automóvel médio, com capacidade máxima de cinco passageiros, mede algo em torno de 2,4m de largura por 4m de cumprimento: ocupa, assim, uma área de 9,6 m².
Um ônibus coletivo grande, com capacidade regular para 80 pessoas – mas que, na prática, muitas vezes, chega a transportar 100 seres humanos – tem aproximadamente 2,6m de largura por 14m de cumprimento: ocupa, pois, uma área de 36,4 m².
Desse modo, por um lado, um ônibus, transportando, dentro do permitido, até DEZESSEIS vezes mais pessoas que um automóvel, ocupa, quando parado, espaço equivalente a quatro destes; e, quando em movimento, considerando que deve ser mantida distância regulamentar entre os veículos, preenche superfície correspondente a dois automóveis.
Já, por outro lado, se o automóvel particular estiver rodando com sua capacidade máxima (5 pessoas), cada passageiro ocupará a superfície de 1,92 m². Se nele seguirem 2 pessoas, a ocupação individual será de 4,8 m²; se, no carro, houver apenas o motorista, este usará sozinho a área de 9,6 m².
Enquanto isso, se o ônibus rodar com sua capacidade máxima regular (80 pessoas), cada passageiro ocupará área equivalente a 0,46 m². Se rodar com mais passageiros que o autorizado, por exemplo, carregando 100 pessoas, cada uma dessas ocupará o espaço de 0,37 m²: nesse ônibus lotado, haverá 3 pessoas ocupando praticamente 1 m².
Em condições de plena capacidade regular, quem está no automóvel utilizará 4 vezes mais área que quem está no ônibus; se, no automóvel, seguir apenas o motorista – o que é deveras corriqueiro – este ocupará 20 vezes mais superfície que um ser humano que está pelejando para respirar no ônibus.
Se o transporte coletivo estiver circulando com lotação acima do permitido, a (des)proporção de superfície ocupada por pessoa que está em automóvel transitando com capacidade máxima ou apenas com o motorista, respectivamente, aumentará para 5 ou quase 26 vezes.
Do exposto, em relação à lotação dos transportes coletivos, por um lado, até mesmo para torná-los mais atraentes ao público que, podendo, tem dado preferência a ir e vir em automóveis, é preciso que a lotação regulamentar seja reduzida, oferecendo aos passageiros uma superfície equivalente a, no mínimo, um terço da que têm os que seguem nos veículos particulares em condições de lotação.
Isto é, se estes têm 1,92 m², a cada passageiro dos ônibus e vans dever-se-ia oferecer uma área de ao menos 0,64 m². Desse modo, por exemplo, em um ônibus de 36,4 m², poderiam ser transportadas no máximo, entre sentados e em pé, 56 pessoas.
Por outro lado, ainda quanto à lotação, caberia à Prefeitura de Fortaleza iniciar a adimplir suas obrigações legais em relação aos passageiros dos transportes coletivos – cumprindo a legislação de trânsito, fiscalizando a lotação e penalizando quem a descumprisse – e a aumentar a frota de ônibus e vans com fito de atender à demanda sempre crescente e que, com a melhoria do sistema de transporte público, majoraria mais ainda.
Quanto à legislação, o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), por uma banda, no art. 100, proíbe o trânsito de veículos com lotação de passageiros superior à fixada pelo fabricante dos ônibus, e, no art. 117, impõe a obrigação de que sejam expostos em local visível os dados referentes à capacidade máxima de transporte de pessoas.
Por outra banda, o CTB, no art. 231, VII, considera infração de trânsito de nocividade média, passível de multa e até de retenção do veículo, a circulação desse com lotação excedente, e, no art. 230, XXI, considera infração de trânsito, também de perniciosidade média e igualmente passível de multa, a não exposição em local visível dos dados referentes à lotação.
Sem dúvidas, oferecendo-se um pouco mais de conforto aos usuários do transporte coletivo – menos sangue, suor e lágrimas –, simplesmente diminuindo a lotação autorizada e fiscalizando e reprimindo as irregularidades na forma já prevista em lei, esse tipo de transporte tornar-se-ia mais atraente, ao mesmo tempo em que seria necessária uma maior frota para atender a demanda.
O acréscimo no número de ônibus e vans em circulação, dada a grande quantidade de carros particulares, provocaria, em princípio, um aumento dos congestionamentos, se a Prefeitura de Fortaleza nenhuma outra medida tomasse. Contudo, dela exige-se mais.
Não são, contudo – frise-se – os veículos de transporte coletivo, que atualmente não passam de dois mil, os grandes responsáveis – quiçá vilões – dos engarrafamentos, mas sim os automóveis particulares. E a solução do problema urbano dos congestionamentos passa pelo incremento da frota dos primeiros acompanhado da criação de restrições à circulação dos segundos.
Sofrem menos as pessoas que circulam em seus automóveis, em comparação aos seus semelhantes que se deslocam mediante os transportes públicos, por ocuparem aquelas muito mais área das vias – podem, como visto, usar até 26 vezes mais superfície.
Para que o sofrimento de todos diminua, é necessária a diminuição dos engarrafamentos e para que isso ocorra, preciso é que menos veículos ocupem as vias.
Para o sucesso desse desiderato, os usuários do transporte público não podem ceder mais, pois já experimentam toda sorte de provações nesses modernos “navios negreiros”; é, portanto, chegada a hora de os que se deslocam em carros particulares cederem.
Para que o trânsito seja menos fonte de infelicidade, tento em vista que a necessidade das pessoas de irem e virem não diminui, deve-se – repete-se – por um lado, aumentar significativamente a frota de ônibus e vans, reduzindo inclusive a lotação autorizada deles (e fiscalizando-a), tornando-os mais atraentes e aumentando, assim, o conforto dos usuários; e, por outro lado, devem ser criadas restrições ao uso das vias pelos veículos particulares.
Enfim, é fundamental que a Prefeitura de Fortaleza regulamente a utilização das vias de modo a garantir mais bem-estar não apenas para os que circulam em seus próprios veículos, mas para todos, pobres e ricos, estudantes, trabalhadores e patrões.